Competências Socioemocionais
EDUCAÇÃO PARA O SÉCULO 21
Mais exercícios, mais repetição e mais testes podem até resultar em uma nota maior, mas não prepararão o aluno de forma integral e, muito menos, darão conta de desenvolver todas as competências que ele necessita para enfrentar os desafios do século 21. Enquanto o mundo abre espaço e cobra que os jovens sejam protagonistas de seu próprio desenvolvimento e de suas comunidades, o ensino tradicional ainda responde com modelos criados para atender demandas antigas. A realidade é que o ser humano é definitivamente complexo e, para desenvolvê-lo de maneira completa, é necessário incorporar estratégias de aprendizagem mais flexíveis e abrangentes.
Uma das saídas para reconectar o indivíduo ao mundo onde vive passa pelo desenvolvimento de competências socioemocionais. Nesse processo, tanto crianças como adultos aprendem a colocar em prática as melhores atitudes e habilidades para controlar emoções, alcançar objetivos, demonstrar empatia, manter relações sociais positivas e tomar decisões de maneira responsável, entre outros. Uma abordagem como essa pode ajudar, por exemplo, na elaboração de práticas pedagógicas mais justas e eficazes, além de explicar por que crianças de um mesmo meio social vão trilhar um caminho mais positivo na vida, enquanto outras, não.
Longe de ser um modismo, a preocupação com o desenvolvimento dessas características sempre foi objetivo da educação e precisa ser entendido como um processo de formação integral, que não se restringe à transmissão de conteúdos. Então o que muda? Para que consiga alcançar esse propósito, a inclusão de competências socioemocionais na educação precisa ser intencional.
“As competências socioemocionais são habilidades que você pode aprender; são habilidades que você pode praticar; e são habilidades que você pode ensinar”
“A gente está falando de uma mudança de cultura, de compreensão de vida, do que a gente acredita que é o ser humano, o conhecimento, a aprendizagem e de qual é o papel da escola”, explica Anita Abed, consultora da Unesco (organização das Nações Unidas para a Educação e Cultura). “O conhecimento em si deve ser amplamente significativo e prazeroso, algo da ordem socioemocional”, diz.
A nova visão não implica em deixar de lado o grupo de competências conhecidas como cognitivas (interpretar, refletir, pensar abstratamente, generalizar aprendizados), até porque elas estão relacionadas estreitamente com as socioemocionais. Pesquisas revelam que alunos que têm competências socioemocionais mais desenvolvidas apresentam maior facilidade de aprender os conteúdos acadêmicos. No livro “Uma questão de caráter” (Intrínseca, 272 págs), o escritor e jornalista americano Paul Tough vai além, e coloca que o sucesso no meio universitário não está ligado ao bom desempenho na escola, mas sim à manifestação de características como otimismo, resiliência e rapidez na socialização. O livro ainda explica que competências socioemocionais não são inatas e fixas: “elas são habilidades que você pode aprender; são habilidades que você pode praticar; e são habilidades que você pode ensinar”, seja no ambiente escolar ou dentro de casa.
EDUCAÇÃO.DOC - COMPETÊNCIAS DA NOVA ESCOLA
CURRÍCULO
Sociedade decide currículo socioemocional no Canadá
Em 2009, o Ministério da Educação de Ontário, no Canadá, alterou as diretrizes curriculares para que contemplasse o desenvolvimento de habilidades socioemocionais nos alunos. A mudança se deu a partir de uma necessidade percebida pelo distrito em formar os jovens de maneira mais completa, tanto para o mercado de trabalho, quanto para a vida adulta em geral. A rede de escolas de sua capital, Ottawa, desenvolveu um projeto interessante para responder a essas novas demandas. Os seus resultados, mesmo que ainda não tenham sido sistematizados, já estão sendo percebidos pela comunidade escolar e servem de inspiração para redes de ensino de todo o mundo.
No Canadá, os ministérios da Educação são regionais e cada distrito possui autonomia para decidir como colocar em prática as diretrizes do governo. O distrito de Ottawa possui 150 escolas, 70 mil alunos e 8.500 funcionários, sendo cerca de 5 mil deles, professores e assistentes pedagógicos.
Jennifer Adams é a diretora de Educação dessa rede e, segundo ela, a diretriz do ministério de atribuir às escolas a responsabilidade de promover a aprendizagem, mas também o bem-estar dos estudantes, se somou a uma necessidade que já era sentida pela comunidade escolar: a formação dos estudantes para a vida. Para atrelar aos conteúdos acadêmicos o desenvolvimento de habilidades socioemocionais, a rede elaborou um plano de ação que envolveu professores, gestores, empresários, representantes da comunidade e os próprios alunos.
Em um primeiro momento, diretores e gestores fizeram uma reflexão sobre quais habilidades gostariam que os estudantes tivessem quando deixassem a escola. Já com esse pensamento aguçado, fizeram uma grande consulta pública, envolvendo professores, estudantes, funcionários das escolas, membros da comunidade e empresários locais no debate.
“O que surgiu claramente desse processo foi que o papel da escola não pode se restringir apenas às competências acadêmicas, mas que tem toda uma gama de habilidades sociais que precisam ser desenvolvidas. Entre elas, as principais são: criatividade, espírito inovador e colaborativo, estar aberto a novas ideias e lidar com desafios”, conta Adams.
Iniciar essa mudança pela consulta pública, explica a diretora, foi importante para deixar claro os principais pontos a serem trabalhados e para o entendimento de que essas habilidades deveriam ser consideradas desde o início da vida escolar até o último dia de aula, através de um trabalho constante e de desenvolvimento crescente, sempre estimulando a evolução. “Assim, quando os alunos deixarem a escola e entrarem, não apenas no mercado de trabalho, mas na vida adulta, serão pessoas mais preparadas e seguras”.
A diretora também ressalta que, com o passar dos anos, desde que o trabalho foi iniciado, as escolas perceberam que alunos estão obtendo melhores resultados acadêmicos nas disciplinas tradicionais. “Conforme melhoramos o desenvolvimento das habilidades sociais nos alunos, o desempenho acadêmico acompanha os resultados positivos. E a melhora do desempenho estimula o desenvolvimento das habilidades sociais. É uma relação de equilíbrio e de troca”, pondera Adams.
O currículo inclui, por exemplo, estratégias para trabalhar resiliência com os alunos, a fim de que, quando se depararem com problemas difíceis de matemática, eles não desistam até encontrarem uma solução.
Para viabilizar essas mudanças, os docentes da rede passaram por capacitações e atividades de formação. “Mostramos para os professores que eles iam ter suporte para se adaptar, que eles mereciam ter diferentes frentes de apoio para ajudá-los a lidar com as necessidades dos alunos”, afirma Adams.
Outro intuito do desenho do novo currículo é promover o pensamento crítico dos estudantes. Por isso, os professores são incentivados a realizar atividades cujos objetivos e metas são definidos conjuntamente com os alunos, que trabalham em duplas ou em pequenos grupos, para estimular a colaboração, a criatividade e a inovação.
“Os docentes são encorajados a escolher recursos de aprendizagem que auxiliem os alunos a falar explicitamente sobre habilidades socioemocionais. Por exemplo, quando se estuda um romance, eles podem ser questionados sobre como o personagem principal demonstra resiliência, ou qualquer outra habilidade, e depois comparar esse comportamento com o de outros personagens de outros livros ou filmes”, ilustra a diretora.
O maior desafio para os professores, no entanto, foi aumentar o uso de tecnologias na sala de aula, segundo a diretora. As escolas da rede são adeptas do Bring Your Own Device, em que os alunos levam seus próprios equipamentos, como celulares e tablets, para usar em sala de aula. “Estamos tentando criar um ambiente onde a tecnologia é um suporte para boas práticas educacionais”, diz a diretora, que completa: “Para isso, estimulamos que os alunos ajudem a desenvolver a capacidade de seus professores de usar essas tecnologias de formas que façam sentido no processo de aprendizagem dentro da escola”.
Uma das maneiras escolhidas para assegurar que todos entendessem a importância dessa mudança foi inserindo no boletim escolar os conceitos de avaliação dessas competências antes das notas das disciplinas tradicionais. Os alunos também passam por processos de autoavaliação, que os permitem analisar seu processo evolutivo e identificar as ações da escola que garantiram esse desenvolvimento.
JENNIFER ADAMS - CURRÍCULO PARA O BEM-ESTAR
AVALIAÇÃO
Rio de Janeiro é pioneiro em monitoramento de competências socioemocionais
Gestores e educadores que já desenvolvem intervenções e projetos voltados para as competências socioemocionais dos estudantes frequentemente sentem a necessidade de identificar se suas ações estão de fato causando algum impacto positivo no desenvolvimento dos alunos. Apesar de muitas vezes o resultado ser visível para aqueles que convivem com os jovens, poucos métodos foram testados até hoje para indicar com mais precisão esses efeitos. Com o objetivo de ajudar a suprir essa lacuna, o Instituto Ayrton Senna reuniu pesquisadores e divulgou, neste ano, um sistema de avaliação de competências socioemocionais para ser usado por redes de ensino.
Um dos pressupostos da proposta é que a dinâmica de ensino e aprendizagem proporciona um contato entre professores e estudantes que vai além da mera transmissão de conteúdo e que, todos os dias, cada educador identifica como andam seus alunos em relação à persistência, curiosidade e vontade de aprender, sua capacidade de concentração, entre outras competências. Muitas vezes, esses aspectos até são considerados no momento da avaliação de desempenho, mas de maneira subjetiva e sem subsidiar práticas educativas mais adequadas para suprir as necessidades específicas dos estudantes.
O trabalho de construção e uso de uma ferramenta de monitoramento de competências socioemocionais tem, portanto, o papel de definir melhor os critérios de observação dessas habilidades e utilizar esses indicadores para orientar a própria atuação docente.
“Assim como no aspecto cognitivo, a avaliação de competências é uma etapa essencial do processo educativo para identificar obstáculos, priorizar objetivos e replanejar ações ao longo da trajetória escolar sem cair no achismo”
“Assim como no aspecto cognitivo, a avaliação de competências é uma etapa essencial do processo educativo para identificar obstáculos, priorizar objetivos e replanejar ações ao longo da trajetória escolar sem cair no achismo”, afirma Tatiana Filgueiras, Coordenadora de Avaliação e Desenvolvimento do Instituto Ayrton Senna. “No entanto, esse monitoramento tem especificidades e não basta replicar métodos ou práticas das avaliações de conteúdo”, defende.
Para construir o primeiro instrumento escolar de avaliação dessas competências em larga escala no Brasil, a equipe do Instituto contou com apoio da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e reuniu os pesquisadores Daniel Santos, economista da USP, e Ricardo Primi, psicólogo da Universidade São Francisco.
Em 2011, o grupo iniciou uma ampla revisão de instrumentos internacionais voltados para avaliação de características pessoais, entre elas as competências socioemocionais. Mais de 100 testes passaram pela análise, para que se pudesse identificar os itens mais adequados para o trabalho no ambiente escolar que permitissem a interpretação de resultados pelo viés das cinco dimensões relacionadas ao desenvolvimento pleno do ser humano (no campo da psicologia, são as dimensões definidas pela teoria do Big Five).
Após o trabalho de seleção, os pesquisadores consultaram outros especialistas em educação, construíram novos itens para o questionário brasileiro e confirmaram, com análises estatísticas, que o novo instrumento era confiável e captava aspectos socioemocionais a partir do autorrelato, ou seja, quando os alunos falam sobre suas próprias características e habilidades.
Em outubro de 2013, com apoio da Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro, cerca de 25 mil estudantes do 5º e do 9º ano do ensino fundamental e do 3° ano do ensino médio participaram da aplicação piloto desse instrumento, denominado de sistema SENNA (sigla em inglês para “Avaliação Nacional de Socioemocionais ou Não-cognitivas”). Além do questionário com até 92 itens, o sistema coleta informações socioeconômicas e permite o cruzamento com resultados cognitivos dos alunos e informações sobre o ambiente de aprendizagem.
Resultados
Os resultados preliminares da aplicação do questionário indicam que jovens com competências socioemocionais mais desenvolvidas tendem a ter melhor desempenho escolar, e que é possível estimular essas competências com ações promovidas por políticas públicas direcionadas para este fim. Ter em casa mais de uma estante de livros, por exemplo, aumenta 40% a chance de uma criança ser mais aberta a novas experiências, e alunos com essa característica altamente desenvolvida tendem a conseguir um desempenho melhor em português.
Isso porque, mantendo-se constantes as características familiares e da escola, foi possível estimar, que ao elevar a abertura a novas experiências de um aluno, o aprendizado pode ter um ganho de até um terço do ano letivo na disciplina. Já para matemática, o desempenho pode ser elevado em um terço do ano letivo com um aumento na dimensão da consciência.
Dentre os aspectos estudados sobre o desenvolvimento das competências socioemocionais, o incentivo ao estudo pelos familiares tem o maior impacto para estimular nos seus filhos aspectos como consciência, amabilidade e abertura a novas experiências. Por exemplo, 23% da diferença entre alunos com alta e baixa consciência seria eliminada caso os pais do aluno com baixa consciência os incentivasse a estudar.
Os dados indicaram que filhos de mães menos escolarizadas são tão ou mais conscienciosos que filhos de mães mais escolarizadas. Esse fato chama atenção para o potencial da abordagem socioemocional para alavancar o desempenho educacional dos alunos mais economicamente vulneráveis, uma vez que pais com menor escolaridade e recursos econômicos não parecem estar em desvantagem em relação aos pais mais favorecidos economicamente.
Para o economista Daniel Santos, agora é preciso amadurecer a forma de usar essas informações em políticas públicas. “O principal é que a individualidade de cada aluno será respeitada, o intuito não é homogeneizar pessoas, e sim desenvolver estratégias para tornar a educação mais eficaz”, disse.
“Importante lembrar que nesse tema não podemos definir qual competência é bom ter em maior ou menor grau, é um conjunto de características que cada pessoa tem em uma combinação diferente”
O psicólogo Ricardo Primi reforça que, diferentemente das avaliações cognitivas, a socioemocional não busca estabelecer um nível ideal de pontuação. “Importante lembrar que nesse tema não podemos definir qual competência é bom ter em maior ou menor grau. Trata-se de um conjunto de características que cada pessoa tem em uma combinação diferente”, completou.
Próximos passos
Em conjunto com os consultores internacionais Oliver John e Filip de Fruyt, a equipe responsável pelo sistema de avaliação atualmente analisa a validação de novos itens para ampliar a abrangência dos resultados. A perspectiva é aprimorar a ferramenta por meio da aplicação em outras redes de ensino.
Como esse modelo de avaliação se destina a oferecer informações em larga escala para políticas públicas, seu formato é abrangente para que possa ser comparável, de modo a permitir análises e trocas de experiência entre diferentes sistemas educativos. Por isso, oferece informações sobra as cinco dimensões da teoria do Big Five.
Os instrumentos de avaliação socioemocional compõem um conjunto que conta ainda com material de apoio e um programa para facilitar a inserção de dados e geração de devolutivas. O sistema está em fase de finalização. “Agora é o momento de garantir que essas ferramentas sejam usadas para alavancar o potencial dos alunos; da mesma forma como nos testes cognitivos, é preciso tomar cuidado para que a utilização não sirva a propósitos de fazer ranking ou metas e outros usos menos pedagógicos”, defendeu Tatiana.
Fonte: https://porvir.org/especiais/socioemocionais/